“As pessoas em minhas fotos dizem que minha câmera é uma parte de mim, tanto quanto qualquer outro aspecto meu. É como se minha mão fosse uma câmera. Se fosse possível, eu não iria querer nenhum mecanismo entre eu e o momento de fotografar. A câmera faz parte do meu dia a dia tanto quanto falar, comer ou fazer sexo.” [1]

Em um pequeno ensaio anterior, introduzi a questão, recebida sem qualquer entusiasmo por meus poucos interlocutores, de uma mudança da relação-mundo, no âmbito fotográfico, a partir da fotografia de Terry Richardson. A ideia central, ali, era a seguinte: os grandes trabalhos de Terry Richardson eram aqueles em que se materializava um novo tipo de criação fotográfica, uma fotografia que funcionava como o registro de uma certa “performance” do próprio ato de fotografar. Daí que eu tenha concluído que, ali, haveria um deslocamento do própria ideia do que seria o fotografar e da relação fotógrafo-mundo. — Não era o caso, lá, de afirmar que esse movimento começara com Terry Richardson mas, antes, de reconhecer essa questão em seu fotografar. — Aqui eu gostaria de organizar um pouco melhor dois tópicos para ver se consigo tornar um pouco mais claro esse deslocamento em questão.

Do documentarismo ao snapshot, ou o free jazz

Uma dos locais privilegiados para abordar a questão da nova relação-mundo da fotografia está na diferença fundamental, e em geral não observada, entre a fotografia documental e o snapshot.

Tomemos, de partida, um clássico exemplo de fotografia documental, as fotos de Walker Evans, Dorothea Lange, Margaret Bourke-White para o Departamento de Agricultura (FSA) do governo norteamericano à época da Grande Depressão americana:


Essa fotografia é fortemente centrada naquilo que chamo de uma experiência do olhar. Susan Sontag, por exemplo, nos lembra como os fotógrafos fariam “dezenas de retratos frontais dos seus sujeitos até que se satisfizessem de terem conseguido capturar o olhar certo no filme”, sendo que esse “olhar certo” significava, para eles, “a expressão do sujeito que exprimisse as suas próprias noções de pobreza, luz, dignidade, textura, exploração e geometria” [2]. Quer dizer, embora documental, as fotos de Evans, Lange, Bourke-White eram, fundamentalmente, olhar, a construção consciente de um quadro que expressasse visualmente essa consciência. O fotografar como olhar é a atualização de uma estrutura de valores, ideias, gostos, a efetivação de uma subjetividade, até mesmo na fotografia dita documental.

O snapshot, embora certamente partilhe, nem que de maneira bastante genérica, a raiz documental do documentarismo fotográfico, já procede de maneira bastante diversa de um Walker Evans. Tomemos, por exemplo, a fotografia do artista plástico Christopher Wool:


Aqui já não estamos diante de imagens criadas enquanto o olhar de um fotógrafo, mas nos vemos mergulhados na própria experiência de um jovem Christopher Wool recém-chegado na Nova Iorque dos anos 70. Não se trata mais de um olhar, mas o registro de uma presença. Não há mais escolhas de luz por serem câmeras automáticas de consumidor com flash embutido, não há mais enquadramentos (ao menos em um certo sentido do termo) pois aqui têm-se, muito mais, uma imagem que aparece como extensão dos olhos de Wool. A fotografia de Wool é extensão de sua presença, é um registro físico de si.

Muitos outros brilhantes fotógrafos da estética snapshot poderiam ter sido mostrados aqui, como Nan Goldin ou Ryan McGinley. Mas o caso de Wool tem um fator distinto, embora iluminador: ele é fervoroso ouvinte de free jazz.

A aproximação do snapshot com o free jazz é sintomática pois, em ambos os casos, leva-se a cabo uma operação similar. Quer dizer: o que, por exemplo, é levado a cabo por um Ornette Coleman quando choca o mundo do jazz com um álbum como The Shape of Jazz to Come? Ele ataca as estruturas harmônicas tradicionais do jazz ao retirar o piano da banda e se afastar, com isso, de quaisquer progressões harmônicas claramente definidas. O resultado é a descoberta de um jazz livre, horizontal, cheio de desníveis, camadas e texturas. Os instrumentistas cada vez menos seguem standards e cada vez mais se ouvem, se sentem, confluem até mesmo ao destoarem entre si. O free jazz é muito menos a construção de um todo harmônico e muito mais o registro da criação de toda uma experiência sonora na qual os músicos estiveram singularmente metidos. Igualmente, a fotografia snapshot é um ataque à estrutura determinada do olhar: o fotógrafo não mais se põe diante do mundo a observá-lo, a enquadrá-lo e enfim fotografá-lo; antes, a fotografia é ela própria fotógrafo e mundo, fotógrafo no mundo [3]. Talvez nada descreva melhor a situação desse fotografar do que a afirmação de Ryan McGinley: “diagrama de uma experiência” [4].

A fisicalidade do ato fotográfico levada ao limite

Um episódio da série Black Mirror leva ao limite a ideia da fisicalidade do registro fotográfico: o último da primeira temporada, The Entire History of You. Ali, somos situados em um mundo em que as pessoas dispõem de lentes de contato que gravam, o tempo todo, o que se está vendo, e as imagens são arquivadas em pequenos HDs localizados embaixo da orelha e podem ser acessadas a qualquer momento com pequenos controles remotos. As pessoas podem tanto rever as imagens com seus próprios olhos, em uma espécie de realidade virtual de seu próprio passado, como também projetar as visões em televisões etc..

Quer dizer: ali, registrar e reviver a imagem vista com os olhos se integra, literalmente, ao físico, passa a ser um novo atributo corporal, um elemento tecnólogico-histórico que se naturaliza.

Mas o episódio, no fundo, apenas consuma uma tendência que já havia nascido com a estética de snapshot: aquela que busca, como dizia já Nan Goldin nos anos 80, abolir qualquer mediação entre o “eu e o momento do fotografar”. A frase de Nan Goldin é intrigante: ela fala do “momento de fotografar” como um momento que poderia ser feito “sem mecanismos”! Quer dizer: não estamos mais sequer diante de um conceito de fotografar que passe, essencialmente, pela mediação de um aparato. O que é, então, esse “fotografar”? Ele é pura experiência, ou pura performance [5].


Notas

[1] Nan Goldin, Ballad of the Sexual Dependency.

[2] Susan Sontag, On photography.

[3] Admitidamente, estou pensando o deslocamento feito pela fotografia snapshot em chave heideggeriana, um pouco como se, nela, o fotógrafo se descobre sendo aí, no próprio mundo que ele fotografa.

[4] Neste sentido, eu compreendo a estética snapshot de uma maneira completamente distinta da de Craig Garrett em seu bom texto sobre o assunto: Coerced Confessions: snapshot photography’s subjective objectivity.

[5] Terá que ficar para outro momento, mas apontamos que aqui poderia ser feita uma discussão sobre as continuidades e descontinuidades entre experiência vivida (realidade) e performance, questão que passaria pela discussão de estilo, mímese e influência de comportamentos, autenticidade existencial etc.; sendo assim, também, pela relação entre teatro e happenings e, por fim, pela obra prima de Ernst Lubitsch, Ser ou não ser.