Pode-se argumentar, e com justeza, que a fotografia de William Eggleston não se resume ao trabalho com a cor, que existe também um registro da vida sulista norteamericana expresso por uma sensibilidade do fotógrafo ao detalhe, ao pequeno, em suma, ao overlooked. Estou de acordo. Mas isso não enfraquece o ponto de que a operação central da fotografia de Eggleston é seu trabalho com a cor.

De um ponto de vista do quadro fotográfico, se a experiência fotográfica de um Alfred Stieglitz ou de um Walker Evans pode ser compreendida, entre outras coisas, enquanto a experiência de uma vasta exploração das possibilidades de composição, Eggleston move-se, ao menos a princípio, em território distinto. Comparado com aqueles, este fica longe de se mostrar um compositor virtuoso; suas composições, ao contrário, são relativamente simples, essencialmente epicentrais, quer dizer: o assunto imediato de suas fotos, seus puncta composicionais, tendem sempre à centralização. Mas aí, justamente, que emerge a nova questão, a contribuição da fotografia de Eggleston: o studium deve se orientar, sobretudo, pelo fluxo das cores.

Eggleston nos faz ver que o colorido muda, essencialmente, a apreciação de uma foto — o que (se) reflete, ao mesmo tempo, (em) uma mudança no próprio fotografar. Pois, agora, ao não se organizar mais elementos dentro de uma escala de cinza mas surgirem regiões tonais sensivelmente distintas, fica aberta a possibilidade de trabalhar novas relações composicionais orientadas pelo elemento da cor. A adição de cor subverte e ressignifica a ordem de forças e presenças dos elementos em uma fotografia, dispensando velhos cuidados e gerando novas necessidades; Eggleston mostra que o fotógrafo, agora, precisa dominar uma economia da cor.

Tomemos a foto “Sumner, Mississipi, Cassidy Bayou in the background”, do livro Guide, para exemplificar essa hipótese. Mas comecemos, antes, como uma versão modificada sua, monocromática:



Em um provável dia de outono — há um mar de folhas caídas, galhos pelados —, vemos um carro branco, clássico símbolo da pujança norteamericana, à esquerda, um homem branco vestido de preto ao meio, um homem preto vestido de branco à direita (e, na perspectiva da foto, atrás do homem branco). Ambos estão virados para a mesma direção e levam as duas mãos nos bolsos. O homem branco tem boa aparência: seu alvo cabelo está preenchido e penteado, barba e bigode bem aparados, terno impecável, provavelmente feito sob medida, postura ereta. O homem preto, atrás, está longe de ser maltrapilho; mas tudo nele, em comparação com o homem branco, é, de certa forma, “piorado”: o corte de cabelo mais desleixado, as roupas muito largas para seu corpo e sem gravata, a postura arqueada. Ele aparece, por assim dizer, como um simulacro, uma cópia “defeituosa” e invertida de seu modelo à frente.

Até aqui, porém, não teríamos mais que uma foto interessante, algo icônica, algo irônica, com um assunto de cunho eminentemente social — as tensões raciais no sul do Estados Unidos.

Agora, na foto original colorida, o que vemos?


Um mar de tons mais pastéis, em geral amarelos — embora um pequeno detalhe que escapa na versão monocromática já possa ser observado aqui: no canto inferior direito da foto há um espaço de grama verde, o que nos indica que a quantidade de folhas amarelas caídas é assustadoramente gigantesca e chega a cobrir o gramado. E esse amarelo das folhas é de um tom mais escuro e dessaturado, assim como o verde das gramas e o marrom das árvores.

Mas um novo elemento salta aos olhos, irrompendo a tranquilidade e o conforto dos tons quentes e dessaturados: a gravata vermelha do homem branco. O vermelho da gravata é um grito, uma explosão, punctum sobrepujante; é um tom de vermelho extraordinário, incomum, muito saturado e mais quente do que o vermelho natural (R) — vermelho, aliás, que é recorrente em Guide e que Eggleston conseguia com seu processo de ampliação por dye transfer. É dessa maneira que acredito que o fotógrafo consegue trabalhar o colorido para promover uma ruptura do sentido literal da imagem. Pois, se é verdade que toda a leitura da versão monocromática se mantém, agora não temos mais tanto uma foto sobre a questão racial no sul dos Estados Unidos, mas sobretudo uma foto sobre uma gravata vermelha. É ela que nos chama atenção e nos fascina, e não é à toa que, também, é ela o epicentro composicional da foto. Esse caso exemplifica como o uso da cor pode introduzir uma subversão da experiência de uma fotografia — mesmo
que seu sentido, em grande parte, se mantenha.