Elle é uma versão moderna dos contos de Daphnée du Maurier, pois seu tema central, assim como das histórias de du Maurier, é o do masoquismo feminino.

O filme se inicia de maneira abertamente ambígua. Não é claro, de início, que se tratou de um estupro. E como Verhoeven constrói essa ambiguidade! Tela preta e gemidos, barulho de porcelana quebrando, corte para um gato que observa, impassível. E então, enfim, vamos para o ato, o agressor mascarado sai correndo. Michèle se levanta serenamente, se ajeita, a virilha esquerda ensanguentada, recolhe os cacos do vaso quebrado. Logo em seguida chega o filho, que vem tratar de assuntos cotidianos, a quem a mulher recebe com a maior naturalidade.

E começamos a nos perguntar: o que realmente aconteceu? Como é possível que uma mulher que acabou de ser estuprada, que acabou de passar pela pior das violências, reaja desse jeito (ou: não reaja)? Será que fazia parte de alguma perversão sexual, que foi uma fantasia sexual encenada?

E Verhoeven não tem pressa de querer dissipar essas dúvidas. Muito provavelmente porque, para a própria Michèle, aquela experiência tenha sido ambivalente, que nem para ela o sentido daquilo estivesse totalmente claro...

Talvez seja interessante, nesse ponto, resgatar uma certa posição freudiana no que se refere à questão da violência sexual; pois, para ele, o impacto traumático de uma violência sexualnão está “simplesmente em ser um caso de brutal violência externa, mas também porque ele toca em algo rejeitado pela própria vítima” (cf. ŽIŽEK, S. Are we allowed to enjoy Daphnée du Maurier?). É como se a violência “real” (o que não quer dizer que a violência física não importe ou seja aceitável, evidentemente) da ato sexual violento estivesse em seu aspecto psíquico, justamente no momento em que a vítima seja (brutalmente) forçada a lidar com o núcleo traumático da própria fantasia. De um ponto de vista psicanalítico, há uma ambivalência da mente humana, uma certa integração da noção romântica do “prazer na dor” — que assume a definição polêmica da satisfação da pulsão de morte.

Lembro disso porque o ponto central do filme talvez esteja em como Michèle lida com o episódio inicial e como ela parece reconhecer, aceitar e até mesmo perseguir a satisfação advinda da sujeição e da humilhação. E a ambivalência do processo não vem de mera aplicação da leitura psicanalítica mas, sobretudo, pela direção de Verhoeven. Como se sobrepõem, em Michèle, o ódio e fascinação pelo seu agressor, e isso já mesmo antes de ela descobrir sua identidade! Pois quando Michèle se masturba em seu quarto observando o vizinho Patrick pela janela, fica em aberto que ela não apenas esteja fantasiando com um mesquinho caso extraconjugal com seu vizinho Patrick mas, sobretudo, que ela estivesse fantasiando que ele fosse o próprio agressor. Daí que a cena em que descobrimos a identidade do agressor seja, para Michèle, ambígua, pois ali não há apenas uma explosão de rejeição contra Patrick mas, pelo contrário, há também uma satisfação da fantasia masoquista de Michèle e uma aproximação afetiva entre os dois.

Em suma, o que realmente acontece em Elle? O estupro, para Michèle, não tem um impacto devastador mas, ao contrário, um certo impacto libertador. Pois Michèle tem uma frieza anormal, uma capacidade sobrehumana de se distanciar de si mesma e aceitar o aspecto satisfatório (e obsceno) do masoquismo que a ato sexual violento lhe revelou. Por isso que, de um ponto de vista do roteiro, seja central a subplot do pai psicopata, assassino em massa, subplot na qual ela não é mera vítima mas está, de um certo modo, implicada ou envolvida. Essa é sua situação singular que permite com que ela reaja de maneira tão (literalmente) extraordinária em relação ao estupro.

E também há de se notar como Verhoeven usa e abusa dos olhares, dos silêncios, dos detalhes, mas também dos subterfúgios (como o olhar impassível do gato) para criar uma quase constante esfera de tensão e ambiguidade, em que nunca ao certo conseguimos cravar com clareza o sentido de uma cena, e a cada novo evento, os acontecimentos anteriores se ressignificam e se reabrem em um filme que se desenvolve de maneira verdadeiramente fora do comum (com uma única ressalva, e talvez mais no plano do gosto do que da crítica: eu o acho um pouco longo). Em suma, o processo de Verhoeven consiste como que em transpor a ambivalência psíquica da situação para o cinema por meio da ambiguidade visual. O arco de autodescoberta de Michèle é quase todo expresso visualmente, inscrevendo Verhoeven numa tradição do bom e velho cinema, muito mais do que o novo — que parece que desaprendeu a filmar.

Paul Verhoeven é gigantesco (e Isabelle Huppert também).