Não vou afirmar que a penetração social do futebol é mero resultado da imagem televisiva. Os jogadores uruguaios já são sensação nas ruas de Paris à época das Olimpíadas de 1924, a derrota na final de 1950 é um desastre nacional para o Brasil. Mas a massificação do fascínio com a performance futebolística só se consuma com a imagem televisiva. 

A televisão, em larga medida, eliminou o rádio como forma de apreciação do futebol. A pura imaginação das jogadas e dos movimentos dos corpos se tornou insuficiente e já não atende mais as complexas exigências da espectação futebolística de nosso tempo. A transmissão radiofônica ainda sobrevive, é verdade, mas de forma residual, como mero "quebra-galho" para quando a imagem televisiva nos está indisponível.

Existe um desenvolvimento da imagem televisiva no futebol que interessa reconstruir. A primeira imagem televisiva é aquela do ponto de vista simples, único, fixo, que permite o acompanhamento do jogo. Ela, em larga medida, não reproduz muito mais que a experiência visual de se estar em um assento na arquibancada. A segunda imagem televisiva, por sua vez, se distancia da experiência do mero espectador de arquibancada ao trabalhar com os diferentes ângulos e posições de câmera, resultado de grandes coberturas midiáticas e altos investimentos; surge, aqui, a figura do diretor de transmissão, e a experiência de espectação começa a se autonomizar, tornar-se ela mesma uma experiência. A terceira imagem televisiva, a de nosso tempos, adiciona à segunda imagem televisiva as bugigangas gráficas, reproduções 3D das jogadas, as linhas de impedimento.

A ideia, aqui, é que o desenvolvimento da imagem televisiva é uma potencialização da espectação. Mas devemos lembrar que a espectação não é mera apreciação ou lamento dos eventos de uma partida; ela também é o fundamento da avaliação e do julgamento. Daí que se essa potencialização, por um lado, no âmbito da apreciação, formou uma grande massa de espectadores que prefere ver o jogo de futebol pela televisão que ao vivo no próprio estádio, por outro lado, no âmbito da avaliação, ela se volta para o próprio jogo.

Por muito tempo, as instituições de futebol tentaram preservar o âmbito do jogo do ímpeto de interferência do espectador potencializado. Tentaram impedir que jogadores e comissão técnica se comunicassem com gente fora do campo, depois que se mostrasse o replay dos lances no telão da partida, e  que se pudesse usar a tecnologia da imagem televisiva para decidir dúvidas sobre lances da partida. Mas o conservadorismo sobre as regras e o jogo sempre acabou por ceder. O VAR e a tecnologia da linha de gol eram a última barreira que a espectação potencializada tinha a romper.

Um fator que influenciou a adoção do VAR no futebol certamente foi a incorporação, com grande sucesso, do sistema hawk-eye ao tênis. Mas as situações são rigorosamente distintas. Pois o tênis, ainda que não em todas as superfícies, já permitia ao juíz e aos jogadores a verificação das marcas das bolas e a contestação e correção de uma decisão a partir dessa verificação. O sistema hawk-eye é apenas a universalização de uma situação já prevista em grande parte do circuito tenístico. No futebol, o sentido da adoção do VAR é muito mais agressivo. Pois se trata da intrusão de uma dimensão completamente estranha às possibilidades originais do jogo. Não é desprovida de (justa) causa a relutância de décadas da FIFA em adotar a tecnologia.

Agora, o VAR está adotado; a participação do espectador veio para ficar. Mas um outro processo interessante já começa a despontar, e não sei exatamente onde irá parar. Pois a potencialização da espectação é também uma alteração em nossa percepção do jogo. Descobre-se os movimentos de um drible ou a cavada de uma falta que não foi, ou revelam-se contatos e colisões que a olho nu e tempo real pareciam inexistentes etc.. Com o VAR, essa nova percepção é embutida no jogo, seu acesso e uso são permitidos ao próprio juiz e aos jogadores em tempo real.

Algumas questões explodem no futebol recente: 1) Existem muitas faltas em situações de gol (tanto de ataque quanto de defesa). O que quer dizer que estamos não tanto descobrindo que existem muitas ocorrências de faltas, muito mais do que são efetivamente marcadas, mas sim que, com o VAR, o juiz teria a possibilidade concreta de marcar todas elas. É uma mudança crucial. Se começarmos a marcar mais faltas na grande área, todo um conjunto de habilidades e movimentações dos jogadores terá de ser repensado. 2) A consulta ao VAR tem demorado demais.  3) O pior de todos os problemas, a consulta ao VAR ainda é impressionista e arbitrária. A meu ver, as diretrizes para a arbitragrem não estão sabendo lidar com esses fatos. Falta uma regulamentação que vise tornar a consulta do VAR mais rápida, simples e transparente, e uma política de horizontalidade na chamada para lances capitais, para além da demora do sistema e do ferimento do ego do árbitro.

De qualquer maneira, o futebol está diante de uma guinada radical. O VAR irá tornar a dinâmica do jogo mais complexa: a arbitragem caminha em direção à onipresença, possivelmente o jogo terá menor fluidez, certos procedimentos do jogo irão mudar radicalmente, e será necessária toda uma "legislação" só para regular a utilização da tecnologia — que terá de ser muito diferente e bem mais complexa do que a que está em prática nessa Copa. A questão central é que o futebol não será mais apenas jogo, mas também a imagem do jogo.