Tendo a considerar que o bom cinema americano da virada dos anos 80 para o 90 é aquele que evidencia uma espécie de esgotamento. Um esgotamento dos símbolos, uma hiperinflação das imagens, que existem em excesso, mas já não têm mais lastro algum. Nessa chave consigo pensar, de cabeça, alguns cineastas: Spike Lee e a exploração de um cinema de forma e temas negros (isto é: uma recusa social e, principalmente, racial das imagens hegemônicas), o pastiche cinefílico de Tarantino, o cinema de David Lynch (provavelmente o mais brilhante de todos esses) e aqueles que tenho por objeto nesse texto: as comédias dos irmãos Farrelly.

Em primeiro lugar, gostaria de lembrar que toda (boa) comédia é um procedimento de dissolução do que é sagrado ou substancial. Ruy Fausto pontua muito bem, nesse sentido, como os árabes na França incompreenderam a importância da sátira a Maomé feita pelo Charlie Hebdo: rir dos símbolos religiosos muçulmanos não era "preconceito", mas sim o próprio modo da sociedade ocidental de "profanizar" o islamismo, de torná-lo corrente no dia a dia francês, de igualá-lo às outras religiões ocidentais que também são constantemente alvo de sátiras, em suma, um certo modo de inclusão do islamismo na vida francesa. Regimes totalitários, instituições sagradas etc. não aceitam o riso; são sociedades sérias.


O ponto central das comédias dos Farrelly é a tentativa de subverter o clichê, a posição e a solução costumeira das imagens hollywoodianas, por meio de uma canalização (muito consciente, diga-se de passagem), do mau gosto, da imbecilidade, da tosqueira.


Filmografia essencial dos irmãos Farrelly:

1) Debi & Lóide [Dumb & Dumber], 1994
2) Quem Vai Ficar com Marry? [There's Something About Mary], 1998
3) O Amor é Cego [Shallow Hal], 2001
4) Ligado em Você [Stuck on You], 2003
5) Antes Só do que Mal Casado [The Heartbreak Kid], 2007