Fui ver Han Solo descrente, mas também, qualquer expectativa encontra-se estatelada no imundo chão da cinefilia depois dos últimos filmes dessa nova geração de Star Wars. Entrei ingênuo, sem lenço, nem documento, nem sobrenome — assim como Han, antes de ser Solo —, e ainda por cima conversando no celular com umas três ou quatro pessoas. Começou o filme e pensei: “caramba, não parei nem pra vem quem está dirigindo”.

E que terrível primeiro ato! Pouca história, muita ação e piripaque e relevos — dor de cabeça para mim que uso óculos 3D em cima de óculos 2D. — Adentrando o segundo ato, para mim já estava tudo muito claro: Hollywood está em migalhas, não consegue estruturar um filme decente, esse filme do Han Solo não tem pé nem cabeça, episódios soltos sem coesão alguma, o defeito é estrutural: roteiro. — Mas uma coisa eu havia percebido: estávamos diante de um diretor que sabia enxertar, qualidade hitchockiana fundamental e rara nas narrativas visuais de hoje em dia. —

Não que essa impressão sobre Hollywood tenha se mostrado falsa por um filme, e não que eu estivesse errado até aquele ponto: o primeiro ato inteiro é apressado, no segundo ato os personagens começam a aparecer de modo meio jogado — primeiros os ladrões, depois Enfys —, não gosto do encontro com Chewbacca — de repente Solo fala fluentemente o idioma dos wookies? — e, por fim, o imbróglio do roubo de carga frustrado, em que se descobre que, na verdade, não era golpe “autônomo” mas a serviço de algum grande lorde de sindicato do crime. E aí é necessário ir encontrar o tal do lorde em seu “iate”, e então estamos em uma festa de gala intergalática, e cada novo episódio só leva o herói para mais longe de seu objetivo. Nesse ponto, eu me encontro já sem o menor interesse por Han Solo, a personagem e o filme, asserindo a mim mesmo minhas primeiras expectativas, constatando que o trem narrativo descarrilhou e que não consigo ter a mais remota noção de como que se fará para que ele volte aos trilhos.

Mas é então, com a leveza de um toque, que todas as expectativas são reviradas do avesso; o que parecia impossível se cristaliza na força de sua mais espessa realidade, um verdadeiro acontecimento: plano fechado, Han Solo de costas, uma mão toca seu ombro; ele se vira, corte: é Qi’ra. Que plano extraordinário! Que singela potência de uma imagem! Em dois minutos, a história reconfigura-se completamente e estou interessadíssimo.

Agora estamos diante de outro filme: todos os plots e subplots se amarram, e vão continuar se amarrando até a cena final. Aparece Lando Calrissian e seu truque desleal para ganhar no jogo de cartas — pequena narrativa contada por meios dos enxertos — e depois sua robô, L3, com seu ímpeto libertário, que a princípio é meramente cômico mas que no prosseguimento será fundamental como distração na missão de roubo do hipercombustível. E o final, cheio de plot twists à la The Sting, com o mais extraordinário de todos, a revelação de que o “vilão outsider”, Enfys, é, na verdade, representante da Resistência e que, com a apropriação do hipercombustível, acaba tendo condições de financiar a criação da Rebelião — aquela para a qual torcemos nos filmes da trilogia original.

Considerando os desdobramentos finais do filme, fiquei pensando como o filme nos convida a refletir sobre o caráter de Han Solo. A questão é que ele não é um herói tout court, desses voluntariosos, inteiramente éticos; em geral, ele é um sujeito comum, moderno, até mesmo meio pilantra, ensimesmado. Mas o que o filme nos mostra é que ele tem uma sensibilidade para o ético em momentos decisivos, isto é, de como, em momentos “históricos”, ele parece sentir o apelo de algo maior que si e eleva-se a esse plano ético-histórico. Acontece nesse filme, e acontecerá de novo na trilogia original.

A beleza do filme reside na radical contingência de seu acontecimento central — o encontro quase impossível entre Solo e Qi’ra na festa — e em como os desdobramentos desse encontro são cruciais para a história da distante galáxia.

A verdade é que, ao fim do filme, estou empolgado como pouca vezes tenho estado no cinema nesses últimos tempos; pois fui ludibriado, como o vilão Dryden Vos que, ao fim, acha que está à frente mas acaba por ser enganado por Han Solo, como o criminoso que é enganado por Robert Redford e Paul Newman em The Sting. — Afinal, o fazer cinema é, por excelência, um enganar, já dizia Inácio Araújo, lembrando que o primeiro grande cineasta foi, justamente, um mágico, ilusionista, ou seja, enganador: Meliès. — E Han Solo acaba, corta para o preto: “dirigido por Ron Howard”; está explicado.