Acabo de sair da sessão de Green Book e, se me alinho em algo com a crítica de Diderot e Baudelaire, é que esta deve ser feita ainda no salão, no calor dos pensamentos, na força da impressões. A outra questão, é claro, é que essa crítica de salão só funciona para um crítico com experiência de seu assunto. Como se, em certa medida, para se falar de um Godard é necessário que se conheça muitos Godard, para se falar de um Hitchock é necessário que se conheça muitos Hitchcock, pois estes grandes autores têm ideias, motivos, têm formas, mas a cristalização da forma exige repetição, retomada — Wiederholung —, em suma, a forma não se abre inteiramente à imediatidade.

Começo com isso tudo pois sinto-me autorizado, nesse sentido, a discorrer sem previsão de término sobre Green Book justamente porque sou fã de longa data do cinema dos irmãos Farrelly. E se aqui Peter Farrelly se distancia, por motivos que desconheço, de seu irmão, e também se distancia da comédia screwball, que ambos revitalizaram de maneira sensacional, ainda assim vejo uma possibilidade de um filme de Farrelly. A ver.

A primeira regra do cinema dos Farrelly, que aqui, em boa medida, aparece novamente, é a recusa (ou pelo menos a tentativa de recusa) das soluções fáceis, dos lugares comuns, dos clichês. [1] E para os Farrelly, esse afastamento do lugar comum passa, antes, por revisitá-lo, para então conduzi-lo a um novo lugar. E esse lugar comum é o que representa Driving Miss Daisy: de partida, temos uma inversão de sua posição racial [2], e com nuances muito mais interessantes do que naquele filme. Porque Tony e o Doutor não são totalmente avessos um ao outro, Tony é um filho de imigrantes italianos que leva uma dura vida operária no Bronx, mas que também tem uma capacidade de ouvir e "entender" a música do Doutor pela tradição musical da família italiana; de certo modo, Tony pela condição social, o Doutor pela condição racial, ambos representam dois párias. Daí que que eles venham a, aos poucos, irem pegando intimidade, "se compreendendo", o que é um lugar comum.

Mas se há uma lição importante da filosofia da arte de Hegel, é a de que o lugar da construção é o drama, e a dissolução, a desconstrução, é lugar da comédia.

E para que esse processo de "compreensão" do outro não escorregue novamente para um lugar comum, Farrelly precisa, justamente, recorrer à comédia (aliás, muito superior àquela que Spike Lee consegue construir em seu filme concorrente): explorar os fortes traços de caráter de Tony, insistir comicamente no choque de mundos erudito vs. popular, trabalhar a direção de atores e abrir a caixa de ferramentas da comédia visual que ele (e seu irmão) dominam com maestria (uma cena-modelo nesse sentido: 1. Tony chega no palco de um dos shows e descobre que o piano, longe de ser um Steinway, ainda por cima está todo mal cuidado; 2. ele cobra o supervisor de palco sobre a situação; 3. o supervisor não dá a mínima para a situação e provoca Tony; 4. Tony mete-lhe uma bofetada na orelha; 5. corte: detalhe em "Steinway" no piano, e câmera recua para mostrar o Doutor tocando o concerto mais tarde naquela noite).

Mas Green Book também é um filme de espaços cerrados: o carro, os quartos de motel, os palcos, as casas de apresentação; trabalha-se bastante os planos mais fechados, pois de certo modo trata-se de um processo intensivo, de uma experiência reservada. Não me lembro do filme se abrindo para uma paisagem, para a vista de uma cidade, pois seu assunto é um assunto da mais elevada interioridade humana, é uma reflexão de si por meio do outro, que talvez não seja tão outro assim. E de certo modo, aqui Farrelly resgata-se a si mesmo em Stuck on You, pois como os irmãos siameses lá, aqui Tony e Doc estão presos um ao outro, confinados a esse espaço mental (que lá também é físico).

Ainda acho, por fim, que a forma-drama limita a subversão de Farrelly. Parece evidente que ele se sente desconfortável em cair em lugar comuns, mas o drama muitas vezes impele a isso. Talvez seja a concessão que ele tenha que fazer para voltar a filmar em alto nível hoje, um momento politicamente correto do cinema que perdeu o tato pela subversidade e pela radicalidade de suas comédia que trafegavam no limite do inaceitável e do mau gosto. Mas ainda assim, é o que há de mais interessante no Oscar de agora, o que há de mais fresco, o que mostra novas maneiras de tentar lidar com um assunto já hiper-explorado, diluindo-o entre outros (igualmente importantes mas com menos hype, como a questão da marginalização da classe trabalhadora), e o que marca um retorno de boa comédia à mais alta galeria do cinema americano (eu não entendo porque hoje os filmes são tão sérios e se levam tão a sério). 

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[1] Assunto que tem desenvolvimentos importantes, mas que terei que deixar para um próximo texto.

[2] Algo, aliás, que não surpreende particularmente na Hollywood de hoje em dia, que parece que tem como que patrocinado esse tipo de resgate de histórias de "heróis da civilidade", o que me soa como uma tentativa de afirmar uma força suprahistórica de seu ideário libertário, democrático, isto é, como se episódios aqui e ali da década de tanto e tanto já permitissem entrever o reconhecimento de um ideal de igualdade latente para além das trágicas determinações históricas etc.